28 de novembro de 2022

high hopes

hoje partilhei um daqueles resumos de fim de ano que o spotify faz, das músicas que mais ouço.

caiu o carmo e a trindade da internet. estavam na lista, aparentemente, músicas que fazem de mim uma pessoa não cool, provavelmente menos aceitável na esfera da malta que sabe cenas.

eu nao sei de música. nem de cinema. sei qualquer coisa de plantas e de livros. de livros sei mais que qualquer coisa. e sei da minha vida, do que vivo e sinto e sei-o tão seguramente que o sei sem medos de julgamentos e convenções. não vivo enterrada nelas. não sou escrava do que é trendy.

aquele aplicativo deixa escolher entre "desde sempre" e "últimas 4 semanas". experimentei e as coisas mudavam bastante. tirando os cabeças de cartaz habituais, a música que oiço muda bastante. Por exemplo, saiu de cena o tim bernardes, que ouvi bastante num período em que estava muito deprimida e entrou malta a que regresso em momentos mais tranquilos e felizes. ou quando procuro relembrar-me do que me define, de quem sou, e de como sou.

e eu sou livre, malta. se há coisa que eu sou, é esta: livre.

permito-me a ter na minha vida toda uma mescla caótica de coisas, gostos, vontades, razões, que entram e saem conforme sou e estou. talvez por isso eu faça tanta coisa, vá a tanto lado, conheça tanta gente, reajo com curiosidade à vida e entrego-me ao que me traz. não tenho definição. sou quem sinto a cada momento.

permito-me ter o frei hermano da câmara, mas também o marco paulo ou o paulo de carvalho e uma série de discos que a minha mãe metia no gira-discos todos os sábados de manhã, enquanto fazia e nos obrigava a fazer limpeza. odiava mesmo fazer limpeza. odiava mesmo ser forçada a acordar, levantar-me e limpar a casa como quem desinfecta uma cena de crime. e hoje, dezenas de anos depois, são os sábados de manhã que me salvam tantas vezes. consigo ver-nos em casa, cada um para seu lado a executar as ordens que tinha recebido, enquanto a música se ouvia pela casa toda. o que antes eu não suportava, é hoje o grande alicerce da minha vida, o regresso a casa.

eu ouvia outros discos que por lá existiam e foi nessa altura que entrou em mim o Chico Buarque, Caetano, Bethânia, e toda a música popular brasileira da velha guarda. Ouvia a música enquanto lia as letras que vinham num panfleto todo dobradinho dentro do disco. e educava-me. aprendia a sentir e a perceber o que sentia. crescia sem saber. preparava-me para ter tudo o que iria precisar para me aguentar ao longo da vida.

havia um disco, que agora tenho cá em casa, da Bethânia e do Caetano, que tinha no verso uma frase:

não pode alcançar os astros quem leva a vida de rastos, quem é poeira do chão.

anos mais tarde li a mesma coisa numa ode do ricardo reis e só a consegui perceber porque já a tinha recebido anos antes, na contra capa de um disco. percebi que eu não era pessoa de viver de rastos, que eu seria sempre alguém que sacode a poeira quando se levanta do chão.

e é isso a música. um lugar onde se pode voltar. às vezes, voltar a nós.

e pouco me importa qual é a etiqueta sócio-cultural que tem. levei muitos anos a aceitar-me para agora me esconder, para não publicar a minha listinha porque está lá este ou aquele, para não publicar aquela foto, porque estou gorda, ou velha ou feia ou o que quer que seja que eu esteja. ou seja.

eduquei os meus filhos com música. todos conhecem e gostam de Leonard Cohen. e todos perceberam cedo que a música é um barco salva vidas. como é a poesia. como é um livro.

hoje tenho uma música, ou várias, que me leva a eles. coisas tão pequeninas e simples que aconteceram.

fui com a mia a budapeste e, na última noite, fomos a pé para buda e sentámo nos a olhar o danúbio de frente para o parlamento. a cidade é extremamente escura, eles só iluminam os monumentos. ali estávamos, sentadas no escuro e no silêncio e eu peguei no telemóvel, abri o spotify, meti uma playlist e tocou high hopes, dos kodaline. e foi perfeito.

quando a mia é feita de ausência, oiço a música e, para mim, é sobre ela e sobre nós. 

há alguma coisa mais foleira que isto? nada

há alguma coisa mais bonita que ter a minha filha para sempre dentro de mim? nada

a do tiago é uma música que ele gostava muito em certa altura da vida dele. uma vez, estávamos na varanda. eu na cadeira a ler e ele deitado na cama de rede e meteu a música a tocar. lembro-me de olhar para ele, ali deitado, tão livre, tão feliz, tão em paz. e essa música colou-se no meu coração e tapa todos os buracos que a vida nos cria.

a da nena é uma música que surgiu numa trend do tiktok. é tão alegre. é tão divertida.tal e qual ela. cantou a à minha frente, numa manhã que me acordou sem pedir licença, cheia de demasiada energia matinal. e hoje mandamos essa música uma à outra sem razão. só porque nos lembramos de nós. e gostamos de nos lembrar, da nossa alegria palerma.

a par com estas minhas memórias, houve pessoas a partilharem me as dela e não havia uma única música que não fosse popular a estar dentro deles. somos portugueses, criados por portugueses que ouviam música popular. e isso deve ser mais forte que qualquer convenção, que qualquer pressão social para só se ouvir o que nos mandam ouvir, para só ler o que nos mandam ler. para só fazermos o que achamos que nos faz ser mais aceites ou considerados. para pensar de forma tão limitada. entristeceu-me isso. entristecem me as amarras.

que se fodam os outros. só nós interessamos no nosso infinito particular. só o que está debaixo da pele, mais agarrado aos músculos, memória e coração, que qualquer bocado de gordura, colesterol, células defeituosas e opinião alheia.

liberdade.

sempre e acima de tudo e todos.
























4 de outubro de 2022

Mais ou menos bem

Estou mais ou menos a fazer dieta e mais ou menos a deixar de fumar. Também estou mais ou menos a fazer exercício. 
Corre mais ou menos bem. 

Pareceu-me melhor ideia não criar muitas expectativas nem objectivos irrealistas que duram uma (dura e longa) semana. 

O primeiro problema é sobreviver às oscilações de humor e tolerância. Compro um maço e fumo uns cigarros de seguida dentro do carro. Depois baixo os vidros, fico irritada de ter fumado no carro e vou até casa com os olhos a chorarem por causa do vento a bater me na cara enquanto conduzo. Mas tudo pela redução de culpa. 

O outro problema são os Filipinos. De chocolate negro. Tento que não existam em casa. Às vezes compro-os e escondo-os de mim própria, o que é absolutamente ridículo é lamentável, mas acontece. Se estiver frustrada ou entediada, os Filipinos morrem. 

Último problema, a mãe de todas as mães. A preguiça. Travo uma dura batalha contra a falta de vontade para absolutamente tudo. O truque que tem resultado é ter sempre a sacola pronta e a coisa acontecer nas pontas dos dias. Ou logo de manhã, uma caminhada com a Noa ou então final da tarde, quando estou a vir de algum lado e antes de entrar em casa, onde mora o sofá. 

Corre mais ou menos bem. 






19 de setembro de 2022

tentar

Tento escrever todos os dias mas ainda não sou capaz. 

Penso constantemente no que quero escrever e como o quero dizer. Ando para trás e para a frente na minha cabeça trocando palavras. Procurando palavras que digam o que eu quero dizer. 

O que tento dizer.

Acumulam se os rascunhos com notas de melhorar melhorar melhorar. Não sei bem o quê mas sei que precisam de melhorar. Preciso de os melhorar.

Vivemos de palavras porque não sabemos viver de silêncio. Quando o silêncio cresce dentro de nós as palavras vão se tornando cada vez menos usadas e por isso mais inúteis e por isso também sabemos (sei) cada vez menos palavras. Eu sei cada vez menos palavras.  

Continuo a não gostar de vírgulas e isso tem dificultado muito fazer me entender. Agora por causa de escrever no telemóvel também deixei de gostar de hífens e é mais um problema.

Tenho muito respeito por palavras mas muito pouco pelas regras que há para as juntar.

Regras….. (tento) (pouco)

Aqui há uns meses comprei um curso de escrita do quotidiano e ainda não o fiz. Fico a pensar na razão de ainda não ter enfrentando isto. Demoro sempre a olhar de frente o que mais quero. Fico à espera, perdida na procrastinação, encontrando razões para não ser o tempo certo. Nunca é o tempo certo.

Talvez deva falar sobre isso com a minha psicóloga. O eterno receio de me encarar.

Hoje porque é de madrugada e porque a insónia me obrigada a pensar nas palavras que não consigo encontrar decidi publicar sem pensar demasiado.

Sem melhorar.






14 de setembro de 2022

dois parvos

Agora tenho dois cães. 

Despachei a Clarinha, a gata que tínhamos, para uma família muito melhor que a nossa no departamento dos gatos. A Clarinha tinha uma personalidade demasiado grande para esta casa e deixava de nos falar quando ficávamos uns dias fora, o que acontecia amiúde. Além disso, o sistema digestivo dela não tinha memória e passava os dias ou a comer ou a miar a pedir comida. O tempo que lhe restava passava a ignorar-nos. 

A última vez que vi uma foto dela já não era uma gata, tinha se transformado num texugo. 

Ficámos uns tempos sem animais cá em casa, além das minhas três cabras adultas. 

Um dia, era feriado, e tive a ideia triste de ir a um canil “só ver”. Até tive que pesquisar no Google por canis aqui na zona e encontrei o Arronches Adopta. Lá fomos. Com repetidos avisos às criaturas que íamos “só ver”.  Pois. 

Assim que lá cheguei, dei de caras com o Pintas, mas a Patrícia nem me deixou aproximar, que ele era muito destruidor e só dava para a malta do trail. Tinha que ser cansado. 

Tentou vender-me aqueles cães cremes dos velhos. Sabem? Até o nome era ridículo. Alf. 

Claro que o Tiago ficou logo cheio de compaixão, que não era assim tão foleiro e que a cauda era muito engraçada e uma série de outros argumentos que nem ouvi. 

Mais à frente estava a Noa. Acabada de devolver de uma adopção que correu muito mal. Ainda tinha o pelo todo foloso, mas atirou se a nós a pedir festas e mimos e nós encantámo-nos. (Mais tarde, viemos a descobrir que ela faz isso a toda a gente e não éramos especiais. É mesmo uma Maria vai com todas.)

Negociámos com o Tiago e fomos passear a Noa e o tal do Alf, que se revelou desinteressante. 

Passámos a ir passear a Noa mais vezes e passei a levar o António (sobre o qual falarei noutra ocasião), uma vez que ele era corredor e assim a Patrícia deixava passear o Pintas. 

Long story short, a Noa foi adoptada um mês depois. Em Abril de 2019. Estar prestes a ter um cão é muito parecido com estar prestes a ter um filho. Toda a gente se mete e oferece opiniões e conselhos não solicitados. Chegámos a temer o pior. Aquilo parecia mais uma prisão do passeio à rua do que um cão. Imensas regras, horários e mariquices que nos pareciam completamente desnecessárias. Afinal, um cão é um cão, certo? 

A Noa veio e adaptou se aos nossos horários, até porque não teve outro remédio. Passeia quando acordamos e já vai com sorte. Tem comida sempre à disposição, porque ou era isso ou era bem capaz de ninguém se lembrar se já tinha comido ou não. 

E passou a ir connosco para todo o lado. É a cadela mais parvalhona do mundo todo. Responde por Noa, Noémia, Rantanplan, Doutora, Princesa, Preta e tudo o mais que entendamos chamar-lhe. Abana sempre a cauda e está sempre feliz. No fim-de semana que a adoptámos, fomos passear ao Luso e levámo-la. Passou de estar presa a uma árvore por um arame para abanar a cauda no Buçaco! Ficou logo ensinada sobre a vida nesta casa.

Faltava o Pintas e seis meses depois tive que aldrabar o António para finalmente dar o passo de o adoptar. Disse-lhe que o iam buscar nesse fim-de-semana e ele entrou em pânico e ligou à Patrícia a pedir pamordedeus que não o deixasse ir embora que ele perfilhava-o.

Afinal o Pintas só queria mesmo mimo. Se correr fica feliz, mas gosta mais de ser o bebé cá de casa. É imensamente parvo e a Mia diz que ele é o Jason do The Good Place. Tendo a concordar. 

Actualmente, moram os dois cá em casa e vivem onde nós estivermos. Habituaram-se a fazer muitos quilómetros e a estar connosco, seja lá onde isso for. E em que condições. Já dormimos os quatro no carro, num desses passeios mais livres que fazemos por aí. Mas também já ficaram em muito hotel por este Portugal, e Espanha, fora. Outras vezes ficam com os tios que vamos arranjando ou sozinhos em casa, esperando até de madrugada que cheguemos para o passeio. Aprenderam a confiar, sabem que voltamos sempre, por isso vivem tranquilos.

São os dois completamente parvos. É como ter dois putos de quatro anos que só têm ideias tristes. 

Uma das coisas preferidas da Noa é andar de elevador e ver as portas a passar à medida que aquilo sobe. Só para verem o nível. 

E todas as pessoas, que foram muitas, que vaticinaram que íamos ser péssimos donos e que os cães não iam durar cá muito tempo, enganaram se redondamente.



(O momento em que conheci a Noa ficou registado.)



https://drive.google.com/uc?export=view&id=1jZ3khKhxQ8mkhOtmt4rYydszF6HE6TVF




bittersweet

Nada está igual.

Claro que seis anos podem apenas passar e pouco ou nada se altera na vida, mas no nosso caso, tudo mudou. A nossa família viu-se a braços com tantas mudanças e desafios, que se transformou noutra coisa, que ainda não sabemos muito bem definir.

Os miúdos cresceram. Em tamanho, e em personalidade. 

Um dos grandes desafios tem sido o ninho a esvaziar e esta mãe a tentar superar esse imenso vazio que fica. Depois de uma vida inteira a sermos apenas os quatro, numa relação plena, agora tenho dois quartos permanentemente vazios, habitados poucos dias no ano e nunca o tempo suficiente para trazer algum enchimento ao que costumava ser.

E essa será a luta. O que costumava ser já nao existe. Agora há outra coisa, a que nos estamos muito lentamente a habituar. A grande dor de crescimento é esta. A saída de casa. As asas que se ganham e os dias que se vivem, cada um no seu percurso individual.

Por um lado, claro que é maravilhoso ver isto a acontecer. Foi para isto que nos preparámos e a educação que lhes dei, serviu. Para eles serem adultos neste mundo. Adultos intervenientes, atentos, envolvidos. Capacitados para essa coisa tão em desuso, chamada pensar. E estou imensamente orgulhosa do caminho. Seguem, nem sempre firmes e seguros, mas seguem, perseguindo aquilo em que acreditam.

A Mia é finalista de Direito, na Clássica, e está este semestre em ERASMUS, em Barcelona. Pelo meio, já foi de várias associações, do Senado da Universidade de Lisboa, e fez alguns voluntariados. Continua exigente, determinada, e imensamente sensível.

O Tiago está no ISCTE. Envolvido até aos ossos na vida académica, descobriu-se entre iguais, luta continuamente por encontrar o seu caminho e dar os passos necessários para o percorrer.

A Madalena está no liceu. Cheia de tudo o que uma adolescência deve ser. Amigas, festas, sonhos, listas de associações de estudantes, planos infinitos, música e mais festas e mais amigos.

Por outro lado, custa horrores. Não vale a pena dourar a pílula. Uma boa mãe torna-se desnecessária. Fui (sou) uma boa mãe. Sou desnecessária. Claro que continuo a dar suporte emocional e a estar muito presente na vida deles, mas convenhamos, nem chega a metade do que era. Sobra muito tempo. Sobram muitas horas. Estou eu, comigo. Estou eu, sem saber o que fazer comigo. 

Sinto-me como que chegada ao fim de uma coisa que era a minha identidade e o que vem a seguir não me interessa muito, não me chega, não me entusiasma. Não me cresce. E essa tem sido a luta. Encontrar-me.



(ilustração encomendada à Marta Nunes )






12 de setembro de 2022

seis anos depois

É aceitar, que dói menos.

Passaram num piscar de olhos estes 6 anos de ausência.

Não, não é verdade. Parece que foi noutra vida. Parece que está aqui o relato de outra pessoa qualquer. Agora leio o que escrevi e lastimo esta ausência. Quantos pensamentos ficaram dentro de mim e quantos outros perdidos para sempre?

Primeiro, o silêncio que se instalou depois da Grécia e, durante muito tempo, a vida toda invadida pela Grécia, e a vontade cada vez maior de me silenciar. Nem era vontade, era uma coisa maior que eu, não intencional. Um silêncio que veio e me roubou qualquer palavra que pudesse ou quisesse dizer.

E depois, a vida, em catadupa. O ritmo mudou, os acontecimentos atropelaram-me, fizeram-me primeiro sair muito de casa, depois enfiar-me muito em casa, dentro de mim.

E agora, de há uns tempos para cá, comecei a pensar em voltar a escrever. Fui-me derrotando com as evidências da falta de treino, que me roubam palavras e me dificultam o pensamento mais articulado. Ainda tenho muita dificuldade em expressar-me por palavras. Mesmo quando falo, nem sempre faço sentido. Tudo isso contribuiu imenso para o silêncio.

Volto agora, nesta tentativa meio escondida de ir ganhando voz. A minha voz interna, confusa e errática. Insegura e ansiosa. A minha voz cheia de seis anos muito grandes sobre os quais, eventualmente, falarei. Volto, infantil. Mas volto. Ou tento, vá.







12 de outubro de 2016

da vida simples

Todos os dias vamos para a escola a pé. Saímos de casa as duas e fazemos a rua entre a nossa casa e a escola. Pouco mais de 300 metros feitos em 5 minutos. Vamos de mãos dadas, observando o começar do dia e conversando sobre o que calha. Assim que passamos o primeiro prédio, vimos sair os dois irmãos que vão para o ciclo, sempre a reclamar um com o outro porque vão atrasados. No ciclo entra-se mais cedo que na escola primária! Depois dobramos a esquina e vamos passando por tudo o que já sabemos que nos espera. A primeira coisa que a esquina nos traz é a temperatura que está, hoje veio o frio da chuva bater-nos na cara e disseste logo que o Verão já não voltava "não é, mãe?", e lembrámo-nos de quando está tanto frio que dobramos a esquina e a cara congela, ou de quando está a chover muito e os guarda-chuvas se dobram e partem sempre no dobrar da esquina. Logo depois, as árvores chamam a tua atenção com a sua lenta transformação, as folhas já estão cor de vinho e a chuva fê-las cair durante a noite. Também se vê a confusão que a chuva provocou nos quintais das pessoas, que ainda estão no ritmo pouco precavido do bom tempo. Ficou tudo à chuva e está tudo molhado. Logo a seguir, aparece o primeiro vizinho a quem dizemos bom dia. Um senhor que sai de casa para esperar a carrinha do pão, que já se ouve buzinar na rua de baixo, e que traz no bolso um punhado de ração seca para os gatos vadios que circulam por ali. Mete a ração no cimo do muro que me dá pela cintura a mim e pelos ombros a ti, garantindo que o cão da segunda vizinha a quem dizemos bom dia não tem ideias tristes. Em Setembro, no primeiro dia do nosso caminho para a escola a vizinha sorriu mais que o habitual e, além do bom dia, disse um espantado "ela cresceu tanto no Verão!". Fazes uma festa apressada ao cão e seguimos. Normalmente, aqui comentamos que não estamos atrasadas. Sabemo-lo porque ainda não vemos a carrinha do pão. Ali, em frente da casa da senhora do cão, é a segunda paragem da rua e quando a carrinha do pão lá está quer dizer que estamos em maus lençóis. Baixamos a cabeça porque as árvores estão a pedir uma poda já há uns tempos e dizemos bom dia ao terceiro vizinho, que ficou doente há pouco tempo. Está de cadeira de rodas, mas sai para o meio da estrada e com a ajuda de uma muleta já se põe de pé a espreitar se vê a carrinha do pão. Comentas-me que o senhor está melhor, porque antes nunca saia da cadeira de rodas e ia pela estrada buscar o pão à paragem que fica no largo, a primeira da rua. Do outro lado, o cão que não se vê, ladra da casa ao lado da casa que está em obras. A obra vai bem avançada e nós fazemos apostas sobre quando estará pronta. Eu aposto na Primavera, mas tu achas que os senhores fazem tanto barulho que isso só pode querer dizer que os donos vão lá passar o Natal. Eu explico-te todos os dias de quem acho que é a casa e tu acabas sempre a dizer "ah, pois é! Já me tinhas dito", mas nunca te lembras quando eu começo a dizer. Chegamos ao largo antes da escola e começas as despedidas. Nem sempre te apetece que eu te leve mesmo até ao portão e eu deixo que controles essa decisão, feita mais de sinais e menos de palavras. Hoje, deste-me o guarda-chuva e um beijinho, mas depois disseste "vens até ao portão?". Claro que vou.
Entramos na praceta e combinamos como vai ser o dia após o fim da escola, mais um beijinho antes do portão e fico ali a ver-te entrar pela escola. Não levamos relógio, nem precisamos dele, o senhor da carrinha do pão diz-nos se estamos atrasadas. Quando faço o caminho de regresso, lá está ele na primeira paragem e lá estão os clientes do costume. Ele vê-me e diz-me bom dia lá do fundo. Comprei-lhe pão uma vez, mas ele vê-me todos os dias. Não lhe compro pão mais vezes, porque saio apenas com a chave de casa para te ir levar à escola e ver a vida do bairro a acontecer enquanto cresces. Um dia, isto tudo vai acabar. Ou deixar de ser assim. Mas agora, este caminho que faço todos os dias de manhã, no lento correr da vida, tornam-me parte do que é agora.








27 de setembro de 2016

a minha cabeça nunca está aqui

Viajo tanto quanto consigo e para onde consigo. Nalgumas vezes sozinha e, sempre que possível, com os meus filhos. Viajar é perceber quem somos. É encontrar nas diferenças culturais, razões de vida que são unas. Ver os outros, para nos vermos a nós e com isso percebermos que fazemos todos parte de uma coisa maior chamada humanidade. Parece-me que a tolerância existe quando se aceita o outro como igual, sabendo-o diferente. E esta noção de igualdade surge com o conhecimento de que as pessoas de outros países sentem, pensam e fazem como nós. Este 'como nós' ganha cada vez mais significado em mim. Viajar oferece-me um mundo mais lúcido, um ego menor e a capacidade de me encontrar nas pequenas coisas. Viajar oferece-me respostas, mas também, e sempre, mais e novas perguntas de descoberta.
E esta coisa de passear vai ganhando espaço. Dias seguidos. Gosto muito de o fazer na versão pelintra. Dá-me uma sensação de total desprendimento de tudo, de liberdade absoluta não saber onde, nem como, nem a que horas. Ir indo. Tenho, por isso, cada vez mais dificuldade em passear com quem seja, porque este nada que tem um logo se vê, não é para todos. Quando deixo os dias seguirem, acontecem coisas inimagináveis e vivemos momentos únicos, pela surpresa e descoberta que dão. Hoje em dia as pessoas gostam de tudo programado. A hora, o lugar, o hotel, o almoço e o jantar. Tomar banho, dormir, comer, sentar na esplanada. E eu ando muito contra a corrente. Eu gosto de tudo desprogramado. Sem hora, sem lugar, comer quando tenho fome, dormir onde se encontrar e quando nos apetecer. Faço muito isso aos domingos, que é o único dia que conseguimos existir pelas nossas leis. Por isso, raramente almoçamos ou jantamos, no sentido formal da coisa, e só percebemos que o dia acabou porque anoitece.

Ora, claro que quando penso nalgum passeio ou viagem, sou atraída pela aventura do sem programa prévio. Apenas um destino ou um objectivo. E essa coisa dos objectivos está-se a tornar numa obsessão, porque eu adoro perseguir imagens ou pontos no mapa que, por uma razão ou outra, soube que existiam. A primeira imagem que me lembro de perseguir, foi a Ilha de Brac, na Croácia. Vi a fotografia na Expo de Hannover, quando andava a fazer um interrail e só descansei quando tirei a fotografia na ponta da ilha. Esta ponta:

















Gostava de mostrar a foto de mim lá, mas não sei onde está. Na altura, em 2000, foi até bastante aventuroso chegar até lá. A guerra civil da Jugoslávia ainda estava mais ou menos a acontecer e quando decidimos ir nao sabíamos bem como o fazer. Em Zagreb encontrámos um ambiente muito difícil e já na costa da Croácia, descobrimos um lugar a querer sobreviver. Mas valeu tudo.

Continuei sempre a perseguir imagens ou nomes de lugares e a isso juntei a minha paixão por conduzir estrada fora. Haverá alguma coisa melhor que ter a liberdade de conduzir estrada fora? Este é o meu luxo.O carro. Amigos da caminhada e da bicicleta, eu não estou nessa. Um carro não cansa, transporta tudo e serve de abrigo, quando falta o sítio para dormir. E eu adoro conduzir. Falta-me concretizar a autocaravana/carrinha adaptada pela estrada fora. Um dia.

Entre os muitos passeios ou viagens que já fiz sozinha, ou com os miúdos, há um lugar especial para o GrossGlockner, na Áustria. Aliás, essa viagem a dar a volta à Áustria ficou no nosso coração. Grossglockner é o ponto mais alto da Áustria. Tem 3797 m de altitude, pelo que é a segunda montanha mais proeminente dos Alpes, depois do Monte Branco. É tudo inacreditável lá e quando li num livro que era considerada uma das 10 estradas mais bonitas do mundo, percebi que tinha que a fazer. Só está aberta entre Maio e Setembro e termina num glaciar. Na foto, a Mia com 9 anos, põe-se a jeito para o registo. Não consegui encontrar mais imagens, mas esta mostra uma parte muito gira da estrada.













Depois desta, e antes desta também, já temos tantas na nossa lista! Tenho planos de as ir contando aqui, para as guardar com o detalhe que merecem!

Agora ando com duas novas obsessões. Era só uma, mas entretanto esbarrei na outra e não pode ser. Ter duas obsessões em países diferentes. Eu preciso resolver isto.

Øresundbron
É uma ponte/túnel que liga Copenhaga, na Dinamarca, a Malmo, na Suécia. Tem de 8 quilómetros de ponte e 4 quilómetros de túnel pelo canal Flint. É absolutamente essencial eu ir lá.










Passage du Gois
Aqui mesmo ao pé de nós, em França, ao lado de Nantes. É uma estrada na baía de Bourgneuf que une a Ilha de Noirmoutier ao continente. É famosa porque a estrada fica submersa pelo mar conforme as marés e apenas é transitável durante a maré baixa, ficando inundada duas vezes por dia durante a maré cheia. How cool is that?










Agora só preciso encaixar isto tudo na minha agenda. Wish me luck! 

13 de setembro de 2016

depois ::: after

***Scroll down for the English version***

Escondi-me. Fugi e escondi-me. Em casa. As pessoas andam a ver de mim e eu continuo cada vez mais escondida e não sei o que faça. Ensaio respostas. Evasivas. Ensaio respostas que não são mais que bocados vazios cheios de palavras que não dizem nada. Silêncio. A primeira vez que me sentei no café perto de Skaramagas com a Andreia, falei dos refugiados e ela disse-me que ia haver um dia que eu ia parar de lhes chamar refugiados. Voltei da Grécia sem refugiados. Voltei com nomes. Pessoas. E agora, que faço? Fui-me embora a querer falar sobre refugiados e volto cheia de pessoas? Não posso contar a vida deles. Dos meus amigos. Nem o nome deles me apetece dizer. Apetece-me guardá-los a todos e não dizer nada aos que esperam por me ouvir. Posso falar dos campos, das squats, dos voluntários, das organizações. Posso falar do que falta. Do desespero. Da vida que passa cheia de nada. Do amanhã que não existe. Da normalidade com que o inacreditável me é relatado. Do difícil que é olhar novamente para a vida que existe ao meu redor. Da certeza que tenho que nenhuma palavra que eu diga será suficiente para fazer entender uma realidade que só vivida pode ser compreendida. Sentida é uma melhor palavra. Posso. Devo. Repetir até à exaustão que são pessoas como nós. São pessoas como nós. São pessoas como nós. São pessoas como nós.

SÃO PESSOAS COMO NÓS.

Não. Não são coitadinhos. Não. Não devemos ter pena. Não, eles não precisam de misericórdia. Precisam de respeito. Da devolução da sua dignidade. E, se calhar por isso, é importante que a palavra refugiados permaneça. É importante que eu fale dos refugiados, que eu volte a essa distância. Há muito para dizer. Mais ainda para fazer. É tudo tão imenso. E tão pouco. O contributo de cada um para cada refugiado é apenas devolver-lhe a dignidade que lhe foi tirada. Às vezes só por uns breves momentos. Mas já contou. Na conta da humanidade, já contou.

:::

I hid myself.  Fled away and hid myself. At home. People are searching me and I continue hidden and do not know what to do. Rehearsal responses. Test answers that are nothing more than empty pieces of words. Silence. The first time that i sat in the cafe near Skaramagas with Andreia, I spoke of refugees and she told me that there was one day that I was going to stop to call them refugees. I returned from Greece without refugees. I returned with names. People. Now what do I do? When i left i wanted to talk about refugees but now i returned full of people. i can not talk about their lives. They are my friends. Neither their names i feel i want to say. i feel the strong need to protect them and don't say a word to the ones that are waiting for my stories about them. I can talk about the camp, the squats, the volunteers, the organizations. I can talk about what is missing. The despair. The life full of nothing. The tomorrow that does not exist. The unbelievable reported to me as normality. And how hard it is to look again to the life that exists around me. The certainty that no words could be enough to anyone understand this reality without actually live it. But I can. I must. Repeat to exhaustion that they are people like us. They are people like us. They are people like us. They are people like us.

THEY ARE PEOPLE LIKE US.

No. They are not poor things. No. We should not feel sorry. No, they do not need mercy. They need respect. They need their dignity. And maybe that is why it is important that the word refugees remain. It is important that I speak of refugees, that I return to this distance. There is so much to be said. More still to be done. It's all so immense. And so little. The contribution of each of us to each refugee is just give him back the dignity that was taken from him. Sometimes only for a few brief moments. But already worth it. On the account of humanity, was worth it.



30 de agosto de 2016

kalispéra*

Podia sentar-me a escrever histórias sobre pessoas. Passo o dia a ouvi-las. E a perguntá-las. E a responder a minha história. E, sim. Sim, há histórias devastadoras. Sim, há histórias que ficam com frases a meio, frases que vão ficando cada vez mais baixinhas até que se deixa de ouvir a voz. Há frases curtas. De quem quer contar sem palavras. Conta com o corpo, com o olhar para o chão, com o gesto que faz com a mão. Mas também há histórias maravilhosas. Ou histórias tristes, contadas de forma maravilhosa. Pessoas maiores que o que lhes aconteceu. E continua a acontecer. Se vim aqui aprender alguma coisa, foi com certeza novos significados para palavras antigas. Dignidade. Respeito. Tolerância. Orgulho. Amor. Pessoa.
Podia sentar-me a contar histórias que fazem chorar, ou reflectir sobre prioridades, sobre orgulhos e vaidades, sobre desperdícios de tempo apenas e só porque as pessoas têm medo e vivem dentro dos seus medos. Medo de falhar, medo do ridículo, medo de se exporem, medo da rejeição. Medo. Medo. Medo. De viver.

Mas hoje não. Hoje quero registar este dia como o dia das pessoas livres de medos.
Hora de saída do campo. Começamos a anunciar que temos que ir. E os miúdos mais velhos, os "Tiaguinhos" como eu lhes chamo, começam a chegar-se e a meter conversa. São sempre os mesmos. Os que ajudam todo o dia os voluntários durante as actividades a tomar conta dos mais novos.
Escoltam-nos ao carro, numa atitude de total cavalheirismo e vão conversando pelo caminho. Fazem isto sem perguntar se podem ir, se queremos que eles vão. Simplesmente vão.
Hoje ensinaram-me a dizer boa noite em grego e quiseram aprender a dizer em português. Um deles sonha ir morar para Espanha. É lá que joga o maior do mundo, o Cristiano Ronaldo. Ele quer vê-lo a jogar e no fim vai conhecê-lo. Explica-me isto tudo com a maior da sacanice no olhar. Os olhos dele são de uma cor indefinida. Algures entre o azul, verde e avelã. Dá-me a mão, com os dedos entrelaçados, enquanto me explica que depois me vai visitar a Portugal. Do outro lado, vai o Jamal. Esse já o conheço há mais tempo. Ele sabe isso e já se comporta com essa segurança. Falamos da escola e de que tem que continuar a estudar, mas ele está mais interessado em saber até quando fico no campo e qual dia é que é mesmo o último. Quando chegamos ao destino, despedem-se com um high five. O Jamal ensaia um meio abraço e sorri. Sem medo. Sem medo de se dar.

*boa noite em grego.